Eu sou contra o aborto. Não por
razões religiosas, científicas ou políticas. Eu sou contra o aborto pelo mesmo
motivo que um sobrevivente de guerra é contra a guerra. Sou uma sobrevivente.
Que exagero - alguns poderão
dizer – comparar o aborto a uma guerra! Então vamos aos números. No Brasil não
existem dados oficiais sobre a quantidade de abortos clandestinos realizados,
mesmo porque, a prática é considerada ilegal. Entretanto, um relatório de 2005
da Organização Mundial de Saúde mostra que cerca de 4 milhões e 200 mil
mulheres tiveram suas gestações interrompidas mediante aborto não espontâneo na
America Latina e Caribe. Destas mulheres, 21% chegaram a óbito.
O Brasil é o país recordista em
abortos clandestinos, com 31% das gestações interrompidas; cerca de 01 milhão e
400 mil abortos por ano.
Agora vejamos algumas dos ataques
mais sangrentos da História:
Hiroshima – 300 mil mortos
Stalingrado – 1,5 milhões de
mortos
Guerra do Afeganistão – 11.221
mortos até o presente momento.
E daí? Você me pergunta. O grande
trauma da perda de uma vida, até onde sabemos, não é para quem se vai, mas para
os que ficam. As sequelas, as lembranças, a dor. Nesse ponto, vejo que muito se
fala sobre o direito à vida, à consciência já existente no feto, sua vulnerabilidade,
mas em nenhum momento eu tomei conhecimento de qualquer discussão que levasse
em consideração os sobreviventes ao aborto.
Se você conseguiu ler até agora,
nesse ponto, permita-me um relato. Nasci em março de 1977. Sou franzina,
fisicamente subdesenvolvida, mas não posso afirmar que seja um problema de
formação, embora eu seja a mais frágil, dentre toda a prole. Minha mãe tomou
Citotec até o 7º mês de gravidez. Ela tentou muitas vezes interromper a
gestação da qual eu fui fruto. Mas sobrevivi. Na sala de parto, a médica
perguntou se ela não queria dar-me em adoção, pois havia se encantando comigo,
apenas um bebê. Imbuída de remorso, dúvida, sentimento de culpa ou medo de ser
julgada, talvez até, em algum momento, amor, a minha mãe disse não e decidiu
ficar comigo.
Sua desculpa principal era ser
jovem demais, tinha 25 anos apenas! Tanta coisa para viver ainda, em sua vida
não cabia uma criança. Mas aos 25 anos toda a capacidade cognitiva do ser
humano já está formada, assim como seu caráter e seus valores. Compreende-se
que todas as ações têm causas e consequências.
E assim, ela me levou para casa.
Não me amamentou. Sua frustração e sentimento de culpa deixavam-na
emocionalmente instável e, a mim, consequentemente, restava o sentimento de
desamor, que oscilava entre beijinhos e “perdoe a mamãe” à afirmações
constantemente repetidas, tal qual disco arranhado:
“MALDITA HORA EM QUE VOCÊ NASCEU!
TOMEI CITOTEC ATÉ O 7º MÊS PARA ME VER LIVRE DE VOCÊ. VOCÊ É A CAUSA DA MINHA
INFELICIDADE. POR SUA CULPA, VIERAM OS OUTROS. SE VOCÊ NÃO TIVESSE NASCIDO,
NENHUM DELES TERIA NASCIDO”.
Cresci ouvindo isso e buscando
meus caminhos. Evasão na literatura, na filosofia. Apeguei-me a Sartre e a
Nietzsche desesperadamente, em busca de alguma racionalidade, porque Cristo, Seicho-no-ie,
Jeová, todos os santos católicos e Orixás eram usados como metodologia de
tortura psicológica, contra uma criança por uma mãe perdida, que buscava a Luz
como uma mariposa desvairada, sem saber que inevitavelmente iria se queimar, na
tentativa de aplacar seus próprios demônios. Íamos a cada templo, terreiro e
igreja diferente todos os dias. E diante de tantas crenças diferentes, de tantos
dogmas desencontrados e de tanta hipocrisia, refugiei-me na filosofia
existencialista.
Apesar disso, concordo que a
mulher tem o direito ao próprio corpo. Acredito que as leis devam ser mais
severas contra violadores, estupradores, inclusive torturadores emocionais.
Acredito que as mulheres devem ser respeitadas em seu ambiente de trabalho e
ser remuneradas da mesma forma que um homem seria, pelo mesmo serviço, sem
discriminação. E concordo, sobretudo, que as mulheres devem ter o direito de
escolha.
Entretanto, mesmo uma não-escolha
já é uma escolha. E se alguém não escolhe ser mãe, tem idade biológica e mental
para ser mãe e, acima de tudo, não foi obrigada a tal, essa pessoa também tem o
direito de escolher entre os inúmeros métodos contraceptivos que existem à
disposição no mercado e gratuitamente na rede de saúde pública.
Não confio em seres humanos
capazes de tirar um pedaço do seu corpo, que pulsa, que lateja, que é vivo,
como cada célula e, que acima de tudo, se tornará uma identidade única, própria
e ao sinta remorso ou culpa. Mas o pior do remorso ou da culpa, não é quando o
perpetrador e apenas ele, tem que conviver com isso. O pior é quando existem
sobreviventes.