sábado, agosto 10, 2013

SOBRE O ABORTO OU RELATO DE UMA SOBREVIVENTE

Eu sou contra o aborto. Não por razões religiosas, científicas ou políticas. Eu sou contra o aborto pelo mesmo motivo que um sobrevivente de guerra é contra a guerra. Sou uma sobrevivente.

Que exagero - alguns poderão dizer – comparar o aborto a uma guerra! Então vamos aos números. No Brasil não existem dados oficiais sobre a quantidade de abortos clandestinos realizados, mesmo porque, a prática é considerada ilegal. Entretanto, um relatório de 2005 da Organização Mundial de Saúde mostra que cerca de 4 milhões e 200 mil mulheres tiveram suas gestações interrompidas mediante aborto não espontâneo na America Latina e Caribe. Destas mulheres, 21% chegaram a óbito.

O Brasil é o país recordista em abortos clandestinos, com 31% das gestações interrompidas; cerca de 01 milhão e 400 mil abortos por ano.

Agora vejamos algumas dos ataques mais sangrentos da História:
Hiroshima – 300 mil mortos
Stalingrado – 1,5 milhões de mortos
Guerra do Afeganistão – 11.221 mortos até o presente momento.

E daí? Você me pergunta. O grande trauma da perda de uma vida, até onde sabemos, não é para quem se vai, mas para os que ficam. As sequelas, as lembranças, a dor. Nesse ponto, vejo que muito se fala sobre o direito à vida, à consciência já existente no feto, sua vulnerabilidade, mas em nenhum momento eu tomei conhecimento de qualquer discussão que levasse em consideração os sobreviventes ao aborto.

Se você conseguiu ler até agora, nesse ponto, permita-me um relato. Nasci em março de 1977. Sou franzina, fisicamente subdesenvolvida, mas não posso afirmar que seja um problema de formação, embora eu seja a mais frágil, dentre toda a prole. Minha mãe tomou Citotec até o 7º mês de gravidez. Ela tentou muitas vezes interromper a gestação da qual eu fui fruto. Mas sobrevivi. Na sala de parto, a médica perguntou se ela não queria dar-me em adoção, pois havia se encantando comigo, apenas um bebê. Imbuída de remorso, dúvida, sentimento de culpa ou medo de ser julgada, talvez até, em algum momento, amor, a minha mãe disse não e decidiu ficar comigo.

Sua desculpa principal era ser jovem demais, tinha 25 anos apenas! Tanta coisa para viver ainda, em sua vida não cabia uma criança. Mas aos 25 anos toda a capacidade cognitiva do ser humano já está formada, assim como seu caráter e seus valores. Compreende-se que todas as ações têm causas e consequências.
E assim, ela me levou para casa. Não me amamentou. Sua frustração e sentimento de culpa deixavam-na emocionalmente instável e, a mim, consequentemente, restava o sentimento de desamor, que oscilava entre beijinhos e “perdoe a mamãe” à afirmações constantemente repetidas, tal qual disco arranhado:

“MALDITA HORA EM QUE VOCÊ NASCEU! TOMEI CITOTEC ATÉ O 7º MÊS PARA ME VER LIVRE DE VOCÊ. VOCÊ É A CAUSA DA MINHA INFELICIDADE. POR SUA CULPA, VIERAM OS OUTROS. SE VOCÊ NÃO TIVESSE NASCIDO, NENHUM DELES TERIA NASCIDO”.

Cresci ouvindo isso e buscando meus caminhos. Evasão na literatura, na filosofia. Apeguei-me a Sartre e a Nietzsche desesperadamente, em busca de alguma racionalidade, porque Cristo, Seicho-no-ie, Jeová, todos os santos católicos e Orixás eram usados como metodologia de tortura psicológica, contra uma criança por uma mãe perdida, que buscava a Luz como uma mariposa desvairada, sem saber que inevitavelmente iria se queimar, na tentativa de aplacar seus próprios demônios. Íamos a cada templo, terreiro e igreja diferente todos os dias. E diante de tantas crenças diferentes, de tantos dogmas desencontrados e de tanta hipocrisia, refugiei-me na filosofia existencialista.

Apesar disso, concordo que a mulher tem o direito ao próprio corpo. Acredito que as leis devam ser mais severas contra violadores, estupradores, inclusive torturadores emocionais. Acredito que as mulheres devem ser respeitadas em seu ambiente de trabalho e ser remuneradas da mesma forma que um homem seria, pelo mesmo serviço, sem discriminação. E concordo, sobretudo, que as mulheres devem ter o direito de escolha.
Entretanto, mesmo uma não-escolha já é uma escolha. E se alguém não escolhe ser mãe, tem idade biológica e mental para ser mãe e, acima de tudo, não foi obrigada a tal, essa pessoa também tem o direito de escolher entre os inúmeros métodos contraceptivos que existem à disposição no mercado e gratuitamente na rede de saúde pública.

Não confio em seres humanos capazes de tirar um pedaço do seu corpo, que pulsa, que lateja, que é vivo, como cada célula e, que acima de tudo, se tornará uma identidade única, própria e ao sinta remorso ou culpa. Mas o pior do remorso ou da culpa, não é quando o perpetrador e apenas ele, tem que conviver com isso. O pior é quando existem sobreviventes.



Um comentário:

Renata disse...

Uma parte importante da tua história de vida omitida e revelada agora pela tua necessidade em o fazer. De certeza que a repercussão dos fatos sobrexistem até hoje e de"alguma forma" são demonstrados quotidianamente. Explica parte de muito daquilo que se apresenta. No entanto, para além do ponto de vista biomédico, faço a minha leitura espiritual à luz do que tenho aprendido na minha caminhada espiritual. A tua persistência pela vida perdura até hoje por permissão do alto. Como creio que a perfeição divina existe e nela subjaz o melhor propósito particular para a nossa vida, creio que a capacitação que vem do alto é completa minha amada amiga. Mas precisamos dá um passo à frente e abrir esta porta que aparenta-se tantas vezes difícil de se conseguir fazê-la. Mas te digo que não é. E se for, por testemunho próprio, digo que vale a pena. Fica tudo tão mais simples, tão mais lógico, mais linear, mais leve... E o que é mais gratificante para mim é saber da herança que posso receber seguindo este caminho. E saber também que todos nós somos potencialmente merecedores de uma vida perfeita ao lado do Pai. Deixo para ti uma passagem bíblica para meditação. Isaías 55. Um abraço fraterno com amor.